Três rápidos e cronometrados toques marcam o começo do vídeo. Significam que a jovem, geralmente de minissaia e barriga mostrando, precisa se preparar para dançar alguma música famosa sobre sexo. Publicação feita, não demora muito para usuários assustados e consumidores assíduos aparecerem. O cenário é bem atual, mas não começou agora.
A hipersexualização do corpo feminino se generalizou a partir dos anos 1960, quando a publicidade percebeu o nascimento de uma nova figura para vender: uma mulher jovem, atraente e heterossexual que “joga consciente e deliberadamente com seu poder sexual, sempre disponível para o sexo”, de acordo com a socióloga Rosalind Gill, em Cultura e Subjetividade em Tempos Neoliberais e Pós-feministas.
Elas receberam informações, ao longo de suas vidas, que isso é ser mulher, segundo a psicóloga ativista Carol Carvalho. Desde pequenas, assistem personagens cheias de maquiagem, com roupas sensuais, ou escutam que precisam usar unhas grandes e saltos no futuro. Quando crescem, passam a buscar a sensualidade para se validar. “Por trás da hipersexualização, pode existir o desejo de ser valorizada e escolhida socialmente.”
Também há outro lado. A modelo Emily Ratajkowski, abertamente feminista, depois de aparecer seminua no videoclipe da canção “Blurred Lines”, afirmou que está “capitalizando sua sensualidade” e “jogando em uma sociedade patriarcal”. Essa lógica é compartilhada, com mais ou menos embasamento, por cantoras, atrizes, escritoras ou ativistas.
“A hiperssexualização feminina gera lucro, pois é pautada nos desejos masculinos. Muitas vezes, são locais de poder, fama e dinheiro inviáveis de serem acessados de outra forma”, diz Carol. As consequências são muitas: desde questões psicológicas para quem cria e assiste esses conteúdos até o fortalecimento da misoginia e do turismo sexual.
Consequências psicológicas da hipersexualização
Era 1998 quando Barbara Lee Fredrickson, professora de Psicologia da Universidade da Carolina do Norte, pediu a parte de seus alunos para colocar um pulôver ou um maiô de banho e, durante 10 minutos, fazer uma prova de matemática.
As mulheres que usavam trajes de banho apresentaram resultados significativamente piores do que aquelas que usavam pulôveres. Não houve diferenças entre os homens. Com o experimento, a Associação Americana de Psicologia concluiu que a sexualização e a objetificação das meninas geram problemas de confiança e conforto com o próprio corpo, o que causa consequências emocionais negativas.
E não para por aí: dentre as muitas sequelas da hipersexualização, estão autoestima fragilizada, crises de ansiedade, transtornos alimentares e até mesmo dependência emocional, conforme a especialista. Depois de passar por relacionamentos abusivos, algumas mulheres se sexualizam por achar que assim vão receber mais afeto e atenção, como exemplifica a profissional. “Por trás de uma mulher hiperssexualizada pode existir a busca pelo lucro, mas também pode ser uma pessoa sedenta por aprovação masculina.”
É claro que não existe problema algum em cuidar de si mesma, mas é sempre importante entender as dinâmicas das quais fazemos parte. “Devemos questionar que empoderamento é esse vendido a meninas e mulheres, onde o que tem mais valor é sempre nosso corpo, e de forma pornográfica”, acrescenta.
Hipersexualização x exploração sexual
“Brasil: sexo, futebol e samba”. Entre os estereótipos do país, ele ser o local ideal para a prática sexual é dos mais populares no exterior, o que incentiva o turismo sexual ‒ a exploração de serviços sexuais realizados por turistas que se deslocam com este único objetivo. A hipersexualização, nesse ponto, contribui para que essa imagem se perpetue.
Considerando que o Brasil é o segundo país no ranking de exploração sexual de crianças, perdendo apenas para a Tailândia, e que tem um dos maiores índices de abuso sexual, o cenário se torna ainda mais problemático.
O controle da hipersexualização nas redes
Como exemplificamos na abertura desta matéria, a hipersexualização encontra nas redes sociais terreno fértil, com vídeos de meninas e jovens neste contexto viralizando a cada minuto. É através delas, também, que a imagem de país altamente sexual se fortalece lá fora.
Algumas têm ferramentas para que o conteúdo não passe adiante, como o TikTok apagando vídeos de mulheres com biquínis. Mas, francamente, funciona? “Apesar de ser necessário que as plataformas criem políticas de uso para prevenir a hipersexualização, essas medidas individualizadas não são suficientes para resolver o problema. Banir fotos ou vídeos de mulheres com biquíni, por exemplo, seria uma resposta ingênua para uma situação extremamente complexa e acarretaria uma série de outros problemas”, explica a advogada ativista Isabella Fernandes.
A estratégia é alvo de críticas por não acabar com a raiz do problemas. “Tapar e esconder os nossos corpos não é a solução. Se essa fosse a resposta, as mulheres que usam burca, por exemplo, estariam salvas da hipersexualização, o que sabemos que não ocorre”, continua Fernandes.
“Poder, hoje, nos vestirmos e nos apresentarmos da forma que quisermos, é uma conquista das mulheres e deve ser preservada, porque somos nós assumindo o controle dos nossos corpos. A hipersexualização dos corpos das mulheres acontece com qualquer roupa que estamos usando porque se trata de uma prática de poder que percebe as mulheres como objetos”, continua Isabela Del Monde, advogada colaboradora do MeToo Brasil e sócia da Gema Consultoria em Equidade. Ela finaliza: “A resposta não é mais controle sobre as mulheres, e sim mais educação para uma masculinidade que perceba as mulheres como sujeitas autônomas que se vestem para si e não para o olhar ou desejo masculino.”
Outro ponto é que retirar o conteúdo da rede não impede que esse tipo de foto ou vídeo seja compartilhado pelos jovens em grupos de mensagens. Segundo o Departamento Científico de Segurança da Sociedade Brasileira de Pediatria, o sexting, troca de mensagens e imagens de teor sexuais, é extremamente comum entre os adolescentes, que mandam nudes acreditando que as imagens jamais chegarão ao conhecimento de outras pessoas.
E a legislação?
“Para menores de 18 anos, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente que protege essa população contra práticas de violência e exploração sexual. Qualquer conteúdo de caráter sexual com crianças e adolescentes, mesmo que exposto pela própria adolescente, devem ser removidos em cumprimento à lei. Entretanto, importante lembrar que os principais agressores sexuais de meninas são conhecidos delas, como parentes e vizinhos, e nosso foco de proteção tem que ser nesse âmbito íntimo e familiar acima de tudo”, pontua Del Monde.
“Obviamente, podemos pensar intervenções legislativas práticas que seriam importantes para combater o problema. Entretanto, por si só, a legislação não é capaz de modificar essa realidade e a simples criação de uma lei específica não vai resolver em nada a situação“, conforme Fernandes.
Como resolver?
“Não existe uma resposta pronta e definitiva para traçar esse limite, mas existe um caminho para chegarmos a uma resolução: educação e debate. Precisamos munir a sociedade de informação para tornarmos esse assunto público e bem fundamentado. As mulheres batalharam e batalham muito para ter direito ao próprio corpo e à liberdade. Mas muitas das batalhas foram cooptadas”, segundo ela. É nesse ponto que precisamos debater sobre a dualidade entre liberdade sexual e objetificação, juntas.